Sou a filha mais nova. Tenho uma (única) irmã e duas (únicas) filhas. Desde pequena que à minha volta sempre houve mais mulheres. Mais tias. Mais primas. Mais amigas. Mais colegas na escola e no trabalho.
Ter mulheres e o feminino por perto nunca me foi estranho. Foi até muitas vezes inspirador. As principais referências para a minha vida são mulheres: a minha avó, a minha primeira chefe, a minha irmã, as minhas filhas e muitas, muitas amigas.
Sempre odiei quando diziam “muitas mulheres juntas, nunca corre bem”. Sim, quero mesmo dizer “odiei” porque esta afirmação me parece que reforça uma ideia que é falsa e corrosiva. É falsa, porque não é o que eu observo na minha vida e no Mundo. Quando se juntam as mulheres o que é fazem é para o bem de si e de todos, há um suporte intangível, há um crescimento evidente e alegria genuína. E é corrosiva, porque nos leva a pensar as mulheres como concorrentes, ou adversárias, ou incapazes de se regularem.
Este é, portanto, o contexto em que escrevo o que se segue.
Sou mulher e sou feminista.
Nasci em junho, mas tenho a idade de abril. Faço, como a democracia portuguesa, 50 anos este ano.
Fui criança nos anos 70. Tinha um ar de rapaz, sobretudo quando alguém decidiu cortar-me o cabelo curto e me vestiam calças. Lembro-me de o meu pai responder “só lhe falta um bocadinho de carne” quando alguém lhe pedia para confirmar se eu era de facto um rapaz. Nessa altura, já pressentia uma diferença, mas ainda não a vivia. Brincava como eles - na rua – andava de bicicleta, rasgava os joelhos, caçava sapos e borboletas, corria mais do que muitos, e era até melhor no berlinde ou no pião.
Em casa, com mais mulheres e um único homem, nem sequer considerava a possibilidade de protestar quando todas as tarefas eram divididas com a minha irmã.
Fui adolescente nos anos 80. E o meu mundo dividiu-se: nós e eles. Agora os rapazes já eram maiores, mais fortes fisicamente. E agora já não podia fazer tudo o que eles faziam – ficar na rua até tarde, sair à noite quando me apetecesse, dizer o que me passava pela cabeça. Agora tinha que ter cuidado. Ser contida, moderada. Não fui! Ou fui pouco. Virei inquieta.
Estive na faculdade nos anos 90. No início pareceu um alívio a tanto constrangimento e amarras. Agora eram (outra vez) mais mulheres. Pareceu-me tudo mais familiar e, por isso, confortável. Fiz amigas que ainda hoje duram. Uma delas foi minha madrinha de casamento. Havia grupos, mas não era o sexo que os distinguia. Estava tudo certo. Hoje, à distância percebo que não estava tudo completamente certo – vinda para uma cidade grande, “sabia” que não podia andar na rua a qualquer hora e em qualquer lugar. Era um perigo não dito e aceite.
Fui mãe nos anos 00. Estava grávida e desejei um rapaz. Tive duas meninas. Lembro o preciso momento em que de ambas as vezes o médico me disse, deslizando um aparelho na minha barriga escorregadia pelo gel, “é uma menina”. E lembro a sensação de queda dentro de mim. E de ouvir o pai dizer “Pronto, vamos ter que ter mais cuidado”. Hoje, entendo o que senti, e percebo que essa pessoa que estava ali deitada numa marquesa, já não existe. Hoje sou a mãe feliz e orgulhosa de duas mulheres.
Entrei no “mercado de trabalho” em 1997 e ouvi e experimentei de tudo. Ou quase tudo, vá. A condescendência pela minha idade (“oh, tem idade para ser minha filha!”) , pela minha imagem (“é gira e isso ajuda!”), pelo meu sexo (“ali as meninas do serviço”). Aqui o nós e eles voltou de uma forma mais forte, mas mais intangível. E sempre que o tentava evidenciar, fui sendo ridicularizada - eu ou as minhas palavras - nas conversas, nas reuniões, nos projetos.
Passei os últimos 20 anos a percorrer um caminho que deveria ter iniciado há 50. Nunca me envolvi em movimentos organizados e ativistas do feminino ou da “luta das mulheres”. Não me juntei a grupos sobre a essência ou a liderança no feminino. Enquanto recuperava de uma doença fiz umas sessões terapêuticas num grupo de mulheres – estive em 4 das 10. Aquilo não era para mim, pensei eu.
O que fiz então?
Fiz em mim, na relação com os homens, com as minhas amigas, na forma como eduquei as minhas filhas, no incentivo que dei às mulheres para arriscarem liderança, protagonismo, palco, audácia.
O que nunca fiz?! Nunca disse - “muitas mulheres juntas, nunca corre bem”
Foi por aqui o meu percurso. E neste mês de março – mês da mulher – quase com 50 anos, apetece-me perguntar – e se eu tivesse nascido hoje? Ou então, o que será diferente para as minhas filhas?
E é neste ponto que aparecem dois episódios
O primeiro na televisão: quando a RTP dedicou o seu Grande Debate” – É ou não é – às mulheres: Como é ser mulher no século XXI?. E para responder à pergunta decidiram substituir o habitual Carlos Daniel pela jornalista Ana Lourenço e convidar seis mulheres e um homem. Durante quase uma hora e meia andaram todas à deriva sobre o que foi e já não é, alegres e aliviadas pelos (pequenos) avanços. Até que quase no final, a advogada Leonor Caldeira tem um momento “bring the thunder” e afirma com veemência: “esta é uma conversa para trazer os homens e perguntar-lhes o que é que têm a dizer entre si e explicar se a masculinidade tem que ser violenta [... ]e “como é que num dos países mais seguros do mundo o problema de segurança é o das mulheres nas suas casas?”.
E o segundo num podcast do “The Guardian” sobre o Garrick Club – um clube de elite onde, ainda que as mulheres possam entrar para almoçar, apenas os homens podem ser membros e ter acesso a áreas mais reservadas onde as pessoas mais influentes tomam um chá. Foi notícia porque está a decorrer uma votação para a possibilidade de se admitirem mulheres como membros. No final a jornalista que escreveu esta história para que todos saibamos, dizia com um certo desalento – quem mais se opõe a esta mudança são as gerações (rapazes) mais novas.
E é isto! No total, quase 2 horas a ouvir sobre igualdade, acesso a oportunidades, alterações no discurso e nos costumes. E no final, um misto de desesperança por um lado, mas também de energia renovada.
São 50 anos passados para mim e percebo as diferenças e as mudanças. Percebo-as quando por exemplo as minhas filhas já não falam do “nós e eles”.
O que me deixa ainda apreensiva são as subtilezas na diferença. As grandes são fáceis de perceber e de resolver. São aquelas mais leves, que quase não são, ou não chegam a ser, que me vão continuar a deixar inquieta.
Para o ano, em março, voltamos a falar das mulheres.
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